A criação de espaços exclusivos de mulheres e feministas foi crucial para as conquistas do Movimento de Libertação das Mulheres. Mas o reacionarismo antifeminista foi rápido em se organizar contra essas iniciativas e seus frutos; atualmente estamos colhendo as consequências dessa desarticulação. A hora de reconstruir espaços feministas é agora, incluindo reviver a autonomia editorial radical das mulheres.
No final dos anos 1960, mulheres feministas começaram a criar espaços exclusivos para mulheres, como livrarias, cafés, revistas, editoras, coletivos, grupos de estudos, abrigos e tudo o que fosse possível. Espaços exclusivos para mulheres eram compreendidos como necessários não só para proteger mulheres da violência masculina, como também para a criação de ideais, práticas e políticas distintivamente feministas dada a realidade da hierarquia sexual que impede mulheres de pensarem, falarem e fazerem de forma independente das teorias e práticas dos homens.
A criação de espaços exclusivos para mulheres, incluindo os primeiros abrigos para mulheres vítimas de violência, em diversos países, só existiram por meio da articulação autônoma feminista. A socióloga alemã Maria Mies, em sua autobiografia (2010), ao relembrar o levante do Movimento de Mulheres entre as décadas de 1960 e 1970 e sua participação na criação do primeiro abrigo autônomo de mulheres na Alemanha, afirma que:
“Mulheres estabeleceram centros de mulheres, livrarias, jornais e associações de mulheres, e ao fazer isso elas não só atacaram a sociedade masculina dominante como também procuraram desenvolver alternativas verdadeiras ao patriarcado”.
Feministas lésbicas foram particularmente importantes nesse processo histórico. Em A Origem da Política Queer, Sheila Jeffreys relembra que:
“Desde os anos 1950, no Reino Unido e nos Estados Unidos houve organizações lésbicas determinadamente separadas de organizações de homens, identificando seus próprios objetivos separadamente da dominação dos interesses masculinos e criticando o sexismo de grupos gays masculinos. Algumas dessas primeiras organizadoras, como Phyllis Martin e Del Lyon, das Daughters of Bilitis, nos Estados Unidos, se tornaram influentes ativistas e teóricas dentro do novo movimento.
[…] O pensamento visionário necessário para criar a visão de mundo do feminismo lésbico não poderia ser facilmente desenvolvido dentro de um movimento misto de libertação gay. Dentro do movimento misto, eram as ideias tradicionais masculinas do Freudianismo, por exemplo, que dominavam as discussões. A análise crítica e a forte rejeição ao Freudianismo como uma filosofia antimulher por excelência formaram uma pedra basilar crucial para a criação da teoria feminista”.
“Mulheres estabeleceram centros de mulheres, livrarias, jornais e associações de mulheres, e ao fazer isso elas não só atacaram a sociedade masculina dominante como também procuraram desenvolver alternativas verdadeiras ao patriarcado”.
Para estas mulheres, a própria prática havia revelado que mulheres não podem contar com a boa vontade de seus opressores para a própria libertação tampouco com as promessas de seus camaradas de incluírem as demandas das mulheres em sua política. Em particular, o separatismo tático das feministas, sobretudo lésbicas, permitiu o desenvolvimento da análise da heterossexualidade como regime político, oferecendo abordagens indispensáveis para compreensão da dinâmica de dominação e submissão que regula a relação entre os sexos.
Durante as décadas de 1980 e sobretudo a partir de 1990, o entusiasmo dos Movimentos de Libertação – incluindo, ainda que tardiamente, o Movimento de Libertação das Mulheres – foi esmaecendo. Os movimentos foram desradicalizados, institucionalizados e fragmentados. As mais velhas, muitas das que haviam inaugurado espaços exclusivos para mulheres, incluindo grupos de estudos, programas de pós-graduação e revistas de pesquisa na Academia, foram ostracizadas. Por meio das políticas neoliberais e globalistas, os movimentos sociais da Nova Esquerda foram fagocitados pela hegemonia liberal e perderam grande parte de sua autonomia, inclusive de pensar.
Mulheres voltaram para organizações mistas sobretudo em partidos e coletivos, e a fragmentação do Movimento de Libertação das Mulheres ajudou a pavimentar o caminho para chegada do reacionarismo antifeminista que vivemos hoje. Por sua vez, os aparelhos da cultura – revistas, jornais, editoras, canais de comunicação – permanecerem inequivocamente centrados nas mãos de uma elite masculina. Estes homens, ao lado de muitas mulheres-acessórios que ocupam alguns espaços entre a elite masculina dominante, garantiram que grande parte da teoria feminista e da história do Movimento de Libertação das Mulheres permanecesse desconhecida.
Dada a importância desse conhecimento para a continuidade do movimento de mulheres e da própria teoria feminista, seria de uma ingenuidade imensa esperar que a realidade fosse diferente. Na Academia, o furor antimulheres no geral, e antifeminista em particular, foi tão gigantesco que os Estudos de Mulheres desapareceram das universidades onde haviam surgido para dar lugar aos Estudos de Gênero e Sexualidade, onde homens se tornaram uma figura central.
Acredito que vivemos um momento crucial no qual a produção teórica e a história escrita das mulheres precisam ser resgatadas, disseminadas e continuadas, e onde a articulação feminista, por meio de um separatismo estratégico, a exemplo do Movimento de Mulheres do Curdistão, é a única estratégia possível para o enfretamento do reacionarismo que estamos vivendo. E nós estamos vendo isso acontecer agora, devagar e silenciosamente, com cada vez mais mulheres enxergando e agindo de forma a dar sequência aos passos das que vieram antes de nós e abriram fendas de luz para que pudéssemos enxergar (e agir) melhor.
Nesse contexto, o que nós queremos é garantir que as obras e os nomes que os homens esconderam ou desradicalizaram encontrem espaço nas mentes, corações e práticas de muitas mulheres, além de ser um espaço frutífero de trabalho criativo para outras feministas.
A foto que ilustra esse texto retrata Florence Howe, no centro, com mulheres que trabalhavam na Feminist Press em 1972. Howe foi professora universitária e fundadora do que veio a se tornar uma editora feminista de vida longa. © Robert M. Klein.